ENQUANTO A LOBA NÃO VEM ....

março 22, 2008

Christiane Torloni dá o ar da graça em uma conversa cheia de criatividade e liberdade, os maiores sinônimos de uma das mais talentosas atrizes brasileiras de nossa época.


Por Melissa Lenz

Da clássica Salomé, de Oscar Wilde, à misteriosa Sônia, de "Beleza Pura" (novela das 7 da Globo), Christiane Torloni já mostrou que seu talento transborda, seja qual for a personagem. Enquanto a atriz se prepara para se transformar na imponente Loba de Ray-Ban nos palcos, você é convidada para ser a voyeur neste bate-papo incomum, que aconteceu no carro, logo após uma deslumbrante sessão de fotos.





Você empresta sua força a personagens fortes e complexas difíceis
de interpretar...


Christiane Torloni: Elas é que me emprestam a força delas, elas é que me ensinam! São as mestras, as sacerdotisas, as grandes guerreiras... Não parece meio burro você dizer: “Não, não quero aprender”? É alguém que entra na sua vida pra lhe transportar pra frente. Elas foram mulheres que viveram há muitos séculos... Uma, há dois mil anos (Salomé), a outra, há seiscentos (Joana D’Arc), mas foram inesquecíveis. A Joana D’Arc, hoje, seria queimada de novo. Nossa sociedade ainda
continua com preconceitos seculares em relação à mulher! Eu me lembro que, na época em que estávamos montando a peça da Joana, eu fazia pesquisas nos jornais e era impressionante como as mulheres eram demitidas ou como as que tinham o mesmo nível de formação de um homem, nos
mesmos cargos, ainda continuavam ganhando menos do que eles ou apanhando em casa. Isso em pleno século 21! Na verdade, há personagens que eu não fiz porque, ou alguém parecido já tinha vindo na minha vida, ou elas eram tão medíocres perto das outras... Por exemplo: menos que uma corrida de 200 metros eu já não vou mais correr porque depois que você estabelece um padrão, você não anda para trás.

Que trabalho lhe tocou profundamente?

Christiane Torloni: O "Amazônia" (minissérie exibida pela Globo em 2007) porque foi uma intersecção entre realidade e ficção totalmente transformadora. Na época das Diretas Já (campanha popular de 1984 pelas eleições presidenciais diretas no Brasil da qual Christiane levantou a bandeira) nós estávamos vivendo ainda no final da ditadura, no movimento pré-abertura e eu já tinha feito dois filmes: "O bom burguês" (1979) e "Rio Babilônia" (1982). Nos dois longas minhas personagens eram ligadas à abertura política. Era um movimento que você não podia ter liberdade de expressão, mas os personagens estavam falando isso. Quando eles entreabriram a porta eu já enfiei o pé inteiro, entendeu? Por isso que logo, imediatamente, eu acabei fazendo a campanha política e saindo pelo Brasil... Era uma ficção que finalmente eu poderia trazer para o meu tempo. Vida vivida. A Amazônia é outra coisa. Na época das Diretas eu andei pela Amazônia toda, há mais de 25 anos eu conheço o lugar. Mas o que aconteceu quando a gente foi gravar a minissérie? O contrário. Estando lá e vendo o que estava acontecendo eu poderia ter ficado completamente protegida dentro da personagem. Mas a Christiane se levantou porque o desmatamento da floresta tem que parar imediatamente! O manifesto "Amazônia Para Sempre" nasce de uma vivência dolorosa de ver a nossa floresta sendo sangrada, queimada, abatida, de doer, de você chorar de estar vendo aquilo. Há um ano ele foi lançado com três únicas assinaturas. E agora estamos batendo 600 mil assinaturas de pessoas comovidas, movidas pela mesma indignação...

Como a leitora pode participar?

Christiane Torloni: Entrando no site www.amazoniaparasempre.com.br e assinando seu nome, dizendo “sou brasileira e sou contra a devastação da floresta amazônica”. O mundo todo pode assinar, mas a gente tem que ter um milhão de assinaturas brasileiras contra isso, para que vire um instrumento público e a gente possa pedir, na forma da lei, que as Forças Armadas possam intervir. O que está acontecendo é invasão de terra pública por brasileiros e evasão de divisas do Brasil por brasileiros, não só por estrangeiros! Quem está matando a Amazônia também é o Brasil! Nós temos que voltar à Constituição que diz que as Forças Armadas estão aí pra isso e preparadíssimas. Nós temos a melhor infantaria de selva do mundo que está lá aquartelada. São homens preparados para fazer o que eles devem fazer e combater a ilegalidade. Você sabe que todos os dias em São Paulo
chegam 900 caminhões com madeira ilegal e que é colocada no mercado. Como é que isso é possível se todo mundo sabe por onde entra?


Aos 51 anos, sua forma física é de cair o queixo! Que natureza é essa?

Christiane Torloni:
Primeiro porque eu fui bem educada. Tem mamãezinhas que enchem os seus bebezinhos de Coca-Cola pela mamadeira! Se elas entendessem o veneno que estão aplicando nos filhos... Fazer de um refrigerante um hábito, é muito ruim. Ele retém o açúcar de um jeito completamente diferente no corpo masculino. A mulher pode começar a ter celulite na infância, basta você dar essa informação pro corpo dela. Tudo vem da criação. Tem que ver quando isso começa a desequilibrar o esqueleto. Eu acho que a gente tem que se gostar por dentro, Melissa. Teve uma exposição aqui em São Paulo que foi linda, por acaso eu vi em
Portugal, chamada Corpos, sobre anatomia. Tinha gente que tinha pânico de ir à exposição porque tem pânico de se ver por dentro. Eu sempre adorei anatomia, desde criancinha. Quando eu não sabia o que queria ser,
até neurocirurgia pensei fazer. Nós somos bonitos por dentro, muito mais do que por fora. O que é um padrão de estética do momento? É ser loura, de cabelo liso, de olho azul? Por dentro somos todos iguais. A menos que
você tenha algum defeito interno. Quando a gente se olha por dentro, devia dizer: “Meu Deus, como é que eu faço para não atrapalhar isso (risos)?”

Você nadou por muitos anos e hoje veleja e faz windsurfe. O esporte é uma disciplina?

Christiane Torloni:
A prática física, pra mim, não é uma questão de manter a beleza e sim, para manter o corpo, a mente e o espírito no lugar. O corpo é a nossa manifestação nesse tempo, a gente só pode se manifestar nesse momento porque tem um corpo. Se não respeitar os limites dele, tentar entender melhor o nosso código corporal, a nossa linguagem corporal... A gente não vive de Prana (energia vital), a gente vive de arroz, feijão, ovo frito, seja lá o que for que vai nos alimentar, entre outros corpos,esse que nos carrega. Eu sou muito grata ao meu corpo. Todos os dias ele me faz ficar de pé. Se a gente for ter uma conversa metafísica vamos falar de outros corpos, mas nesse mundo eu preciso do meu corpo.

Você tem histórias pessoais que renderiam uma bela autobiografia...

Christiane Torloni: Está sendo preparada para mim uma biografia dessa coleção que será editada em São Paulo pela Secretaria de Cultura, a Coleção Aplauso. Quem vai me biografar, que eu digo que vai me “curar”, é a minha prima que é uma super curadora de arte (Denise Mattar).Tem um dos capítulos que vai ser sobre algumas viagens que eu fiz. De vez em quando eu tenho necessidade de IR, sabe como? Eu sou uma péssima turista, mas sou uma boa viajante.


Você viaja para conhecer novos lugares ou são partidas em busca de si mesma?

Christiane Torloni: Eu acho que é pra ficar quieta... Às vezes a gente precisa sair do nosso ambiente pra poder observar os outros. Não “os outros” da sua vida, mas do mundo. Quando se está em algum lugar, seja onde for, e é uma pessoa muito conhecida, todos olham muito pra você. E o artista é o cara que precisa observar os outros... É quase uma perversão, o artista é um voyeurista! Porque essa também é uma das fontes.

Fonte para uma nova criação?

Christiane Torloni: Eu nunca devo ter criado nada de novo. A gente é fruto daquilo que observa, em tudo. Mais do que autora, eu sou uma boa intérprete... Às vezes eu preciso descansar. Antes de ser atriz eu tinha um prazer enorme de observar as pessoas, escrevia sobre isso. Quando muda o lado, você passa a ser o observado e é aí que perde a liberdade. É muito difícil ser o observado e o observador ao mesmo tempo. Viajar também é encontrar um certo anonimato e se misturar um pouco.


Você aparenta gostar de solidão...

Christiane Torloni:
Com certeza! Eu acho que sou uma excelente companhia pra mim mesma (risadas). E, aliás, péssima para os outros (risos)! Por isso que de vez em quando você tem que poupar os outros de você mesma. Todos nós somos insuportáveis, maníacos...



Você é muito metódica?

Christiane Torloni: Não é metódica, todos nós temos as nossas manias. A gente bota a calcinha daquele jeito num lugar e alguém vai e mexe e você fala “quem foi que mexeu?”. Ou bota alguma coisa na cozinha e quer encontrar lá depois... Tem aqueles dias que pegam você numa TPM da vida e você diz: “Não, hoje é um dia de poupar o outro de mim mesma, deixe-me ficar quieta!”. Assim o cara não vai pegar o estilhaço de uma coisa que não tem nada a ver com ele.

E como faz para se poupar de si mesma nos seus piores dias?

Christiane Torloni: Olha, eu vou te dizer uma coisa: Trabalhar me cura muito, sabia? Porque me descansa de mim mesma. Por isso que eu detesto que as pessoas fiquem me convocando quando estou em cena. Porque pra mim é como se eu estivesse viajando. Ou como agora, que a gente estava fotografando, tem uma viagem acontecendo. Eu não vou pra cena para me encontrar, vou pra descansar um pouco de mim. Às vezes você está doente e sai de cena curada. Ou está deprimida e a personagem te levou para outros recantos da sua psique... Eu sou mais tempo Christiane Torloni, hoje, na minha vida, do que a Christiane Maria Santos Torloni. Então é
indivisível.



O trabalho hoje é uma necessidade para lhe trazer equilíbrio?

Christiane Torloni: Hoje e a vida inteira! Antes de ser atriz eu já trabalhava, desde os 15, 16 anos. Sempre. A necessidade de começar a trabalhar, de ter uma renda, e isso estar associado a uma independência, sempre foi uma coisa importante. Mas eu fui criada assim, como uma mulher muito independente também. Eu acho lindo que a minha mãe (a atriz Monah Delacy) seja independente e é casada com o meu pai (o ator Geraldo Matheus) há 54 anos (risadas). Você vê que uma coisa não tem nada a ver com a outra, não é? Então você pode, e deve, ser uma mulher independente e ter descoberto o amor da sua vida e ficar casada com ele por 50 anos.

Você já está casada há muito tempo com o Ignácio Coqueiro e moram separados. Por quê?

Christiane Torloni:
Ah, mas não estamos há 54 anos, né (gargalhadas)?! Sim, mas não é que nós moramos separados, nós nunca moramos juntos, sabe por quê? Por causa das nossas independências, por causa das nossas solidões, por causa dos nossos universos! Quando você está com o outro só porque quer estar é tão melhor do que quando está porque tem que estar, né? É mais leve. E talvez seja uma oportunidade que o nosso tempo nos dá. Você vê que a (escritora) Simone de Beauvoir e o (filósofo) Jean Paul Sartre tiveram uma relação de 50 anos e cada um na sua casa. Também era um momento do mundo e da França, mas era totalmente atípico. Eles tiveram que lidar com preconceitos que só sendo muito forte pra superar. Na verdade isso é um instrumento do nosso tempo. Hoje você não precisa viver literalmente casada com uma pessoa se não quiser.

Que livros estão na sua estante?


Christiane Torloni:
Todos da minha geração, todos os “lobos da estepe” ("O lobo da estepe", Hermann Hesse) da vida. E “livro de Miss”, qual o livro que toda Miss sempre diz que leu? O pequeno príncipe! Eu acho que esse é um livro emblemático que os adultos, vira-e-mexe, deveriam reler para perceber onde deixaram a sua ética, sua moral, sua delicadeza, seu compromisso com o mundo. O Oscar Wilde tem um livro chamado "O príncipe feliz" que é lindo! Também é um compêndio de moral e ética, é bárbaro isso! Você pega livros que são aparentemente infantis, mas grandes lições para os adultos... "O Sidarta", de Hermann Hesse... Da minha
geração eu passei por todos. Grandes biografias. Você observar como foi a vida das outras pessoas reafirma sua necessidade de construir a sua identidade. Não que você vai ser igual, mas perceber gente que teve
coragem em momentos que o mundo era muito difícil.


Já misturou realidade e ficção a ponto de confundir sua identidade?

Christiane Torloni: Não tenho a menor confusão emocional! Nós somos esquizofrênicos oficiais. É como dizia Fernando Pessoa: “Nós somos muito mais do que um”. Por isso que a arte existe... Para dar a liberdade para o outro. Por que o teatro precisa do outro, da platéia? O outro é essa liberdade dos outros eus. O cara vai na platéia assistir a um espetáculo no qual ele descansa um eu dele e identifica outro.

Quem é você neste exato instante?

Christiane Torloni: Eu sou a Christiane Torloni (risos)! Essa que vos fala e acabou de fotografar com você mas que... se Deus quiser, já já será a Loba...



Que venha a Loba de Ray-Ban!

“Sonhar é uma prerrogativa do ser humano. A capacidade de perseguir o
seu sonho e transformá-lo em realidade, no entanto, é uma dádiva de
poucos. Reconheço em Christiane esta imensa qualidade: transformar a
matéria sonhada em força de trabalho, em manifestação social, em obra de
arte. Suas escolhas e a forma correta e cristalina como conduziu a
carreira são admiráveis. Forte, talentosa, corajosa, vibrante, apenas
alguns dos inúmeros adjetivos com os quais podemos descrevê-la.
Personalidade extremamente respeitada, é uma das poucas mulheres
brasileiras que atua com desenvoltura em qualquer esfera da vida
nacional. Toda esta coerência, brilhantismo e preparo intelectual
exacerbaram positivamente sua meiga sensibilidade. Amiga e parceira das
melhores, tem sido uma nova e encantadora companheira de viagem. Dentre várias paixões comuns, descobrimos uma necessidade soberana: montar a peça Loba de Ray-Ban, de Renato Borghi, com direção de José Possi Neto. A estréia está prevista para junho deste ano, no Centro Cultural Solar de Botafogo (RJ).” Leonardo Franco, ator e diretor do Centro Cultural Solar de Botafogo, vai atuar ao lado de Christiane na peça "Loba de Ray-Ban".


Fonte : Site Uol, Revista Uma

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